quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Educar para transformar

A educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A frase é de um dos maiores pensadores da pedagogia do Brasil e do mundo, Paulo Freire, falecido em 1997. Com sua saga para levar o ensino e a consciência crítica aos mais necessitados, ele serve de inspiração para uma geração de professores. Um de seus discípulos é o filósofo, autor de livros como a “A Escola e o Conhecimento” e “Não nascemos prontos”, mestre e doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Educação (Currículo), Mario Sergio Cortella, de quem Freire foi orientador no mestrado. Assim como Freire, Cortella enxerga na educação muitas saídas para problemas da sociedade. Porém, critica o fato de inúmeras famílias transferirem sua responsabilidade para as instituições escolares. Ele fala ainda da questão escola pública versus particular e como a educação está vinculada à ética, mídia, religião e tecnologia. Leia, a seguir, a entrevista com o filósofo.


Há muito tempo, a escola deixou de lado sua função primeira de educar para assumir também o papel social. Dentro do contexto filosófico, qual o peso de cada instituição nessa formação?

Mario Sergio Cortella – Outro dia, um pai de aluno me perguntou: “qual o senhor acha que deve ser o papel da família para colaborar com a educação dos nossos filhos na escola?”. Eu disse a ele, com todo o respeito, que havia um equívoco na formulação da questão, porque não cabe à família colaborar com a escola na educação, mas exatamente o contrário, é a escola que colabora, a família é responsável. A escola assumiu muitas tarefas nos últimos 20 anos, especialmente a escola pública, porque ela é parte da rede de proteção social e, por isso, desempenha tarefas do Estado, entre elas a proteção à vida, segurança e liberdade dos indivíduos. Por isso, cabe sim à escola oferecer educação para o trânsito, ecológica, sexual e até alimentar. Mas não cabe ao Estado, via escola pública, substituir a responsabilidade que a família tem, a menos que ela esteja em situação de descuido total. Cabe à instituição promover a autonomia, a solidariedade e a formação crítica, mas a responsabilidade principal continua sendo da família e ela não pode se eximir disso.

Você defende que a escola pública traz mais benefícios aos indivíduos, já que, nas instituições particulares, há uma grande inclinação ao capitalismo e à concorrência. Mas todos nós sabemos que, na escola pública, as crianças ficam abandonadas à própria sorte...

MSC – Depende da escola. Uma parcela das escolas privadas tem um nível mercantil, no sentido puro e simples, outras, não. O foco não deve ser escola pública versus escola particular, mas sim escola boa versus escola ruim. Nós temos escolas públicas de nível bastante elevado e outras, precário. A mesma coisa vale para a escola privada. Porém, existe uma lista imensa das particulares que são facilmente ultrapassadas pelas públicas de nível mediano. Então, não podemos cair nessa armadilha. Vale lembrar que a escola privada no Brasil só representa 13% do total. Quando estamos falando em educação escolar no Brasil estamos nos referindo aos 87% da rede pública. Por isso, é necessário que os governantes tenham um compromisso real com a educação, com a realização de avaliações e exames periódicos, de maneira que o País possa dar os passos para a saída da indigência. Apesar de, muitas vezes, o compromisso que vários dizem ter com a educação ser meramente conveniente e eleitoral, nos últimos 15 anos, seja na gestão do Fernando Henrique Cardoso ou do Lula, demos início a esse processo. Fazer isso com eficiência, entretanto, exige parcerias com o mundo da sociedade privada, compromisso dos empresários, além da atenção de pais e mães como cidadãos.

Por mais que a família e a escola sejam atuantes na formação do indivíduo, não podemos renegar a relevância da mídia como fator de influência na vida das pessoas. E muitas vezes, por sinal, ela orienta de forma errada. Em sua opinião, qual a solução para esse dilema?

MSC - A mídia de natureza privada é majoritária no Brasil, mas, se nos referirmos aos meios de comunicação, ela é uma concessão do Estado. Por isso, cabe a ele, dentro dos níveis da democracia, fazer não a censura, mas exigir que sejam cumpridos os elementos indicados nessa concessão pública. Por outro lado, os meios de comunicação se sustentam à base de publicidade. Isso significa que há um papel forte dos proprietários da mídia para que ela caminhe em direção da ética e da decência e auxilie na elevação das condições de vida e de consciência de uma nação. Contudo, é necessário que o cidadão, se detectar em determinado tipo de mídia um encaminhamento negativo de valores, uma deformação dos conteúdos éticos, um consumismo e materialismo devastadores, boicote não só o veículo como os produtos que o financiam. Eu, por exemplo, não compro qualquer marca de cerveja que utilize sexismos em suas mensagens. Além de não comprar, divulgo a minha posição. Mas não basta que eu me recuse isoladamente, é preciso que eu junte mais gente nessa mesma lógica. Esta também é uma maneira de educar a mídia para que ela caminhe em uma direção de decência.


Além da falta de ética verificada na mídia, tal característica pode ser encontrada em muitos outros setores, principalmente na política, como temos visto nos últimos anos, ou até mesmo em pequenos gestos familiares, com pais que ensinam determinado conceito, mas não dão o exemplo. Como ensinar o que é ética no mundo-cão que vivemos hoje?

MSC - A primeira coisa é recusar o mundocão. Recusar não significa não estar nele, mas recusar os valores que ele coloca. A família é essencial nessa postura e, de forma sequencial, a escola, a mídia e a igreja. Essas quatro instituições sociais têm uma presença enorme na vida das pessoas e também a tarefa de formação de valores que não se subordinem à ética da patifaria e da malandragem. Por outro lado, ética não é uma questão de princípios falados, e sim de natureza exemplar. É necessário lembrar que não é o outro que deve dizer o que eu devo fazer e sim as minhas convicções. O fato de todos fazerem algo errado, não me obriga a fazê-lo, mas me coloca a escolha de fazê-lo. Não se deve confundir ética com cosmética. Ética não pode ser uma coisa de fachada, seja na família, mídia ou escola. Nós temos partes podres na nossa vida social, mas elas ainda são minoritárias, mesmo tendo um grande impacto. Há milhares e milhares de homens e mulheres que são decentes e não podem ser reféns daqueles que não o são.

Está clara a proximidade entre a frágil educação e a criação de pessoas alienadas e submissas. Você acredita que este quadro vai mudar um dia? Qual a solução para uma sociedade na qual os alunos espancam professores? Em sua opinião, quais os fatores que desencadearam tal situação de desrespeito e insubordinação?

MSC – Não existe uma única causa e nem um único sujeito. Eles são múltiplos. Há a responsabilidade da família quando ela implanta a aceitação da violência nas relações, principalmente quando as crianças e jovens veem que a maneira de resolver conflitos dentro de casa é por meio da violência. Maus exemplos no dia a dia vão formando personalidades que supõem que a saída para a violência seja mais violência. Eu enxergo um cenário que precisará ser positivo. São necessárias ações cotidianas para que essas pontes para o futuro sejam criadas. A escola, por exemplo, não cria violência sozinha, apenas reproduz a violência dentro dela. Mas também pode ser um meio de diminuí-la se atuar com conteúdos que ofereçam sentidos à vida dos alunos. Só há uma solução para o problema: o enfrentamento da situação por intermédio de um mutirão de responsabilidade, que deve envolver a família, a escola, a igreja e a justiça. Muitos se omitiram, são complacentes e deixaram os professores reféns nas escolas sem se preocupar, sem participar das reuniões, sem olhar o que seus filhos estão fazendo e o resultado é esse. Algumas coisas na vida é melhor começar cedo antes que seja tarde.

Ainda em relação à educação, muitas vezes as crianças não sabem mensurar questões sobre minorias como pobres, negros, índios, entre outros, e acabam sendo agressivas. Como o ensino da filosofia, dentro da questão ética, pode ajudá-las em uma mudança de comportamento?

MSC - Se o ensino da filosofia trabalhar com a noção/ideia de pluralidade cultural, diversidade de vida e multiplicidade étnica, fará com que haja a compreensão do respeito à diversidade. Do outro lado, é preciso lembrar que essas minorias nas quais nos referimos são de poder e não numéricas. Pobres, negros, mulheres, homossexuais, entre outros, precisam ser tratados, no campo da ética e do ensino da filosofia, dentro do conceito que eu chamo de antropodiversidade. Lidamos muito com o conceito de biodiversidade, mas também é preciso introduzir a ideia de diversidade humana. Nessa direção, o ensino da filosofia não tem a exclusiva tarefa de fazer essa conversão, mas tem a força de oferecer fundamentos para que se pense, no campo da história humana e da reflexão filosófica, o lugar da diversidade.


A má educação das crianças muitas vezes leva ao quadro que todos nós estamos acostumados a ver, com a população carcerária crescendo a cada dia. Como você vê esse assunto?

MSC – João Guimarães Rosa já dizia que o sapo não pula por boniteza e sim por precisão. Não é que um dia talvez a gente consiga fazer isso, a gente tem que fazer. Atualmente, o Ministério Público e os Conselhos Municipais e Estaduais da Criança e do Adolescente, em parceria com o Estado, trabalham com ações nessa direção. O fato de haver uma população carcerária extensa não é um sinal de fim dos problemas. Haja vista que o país que tem a maior população carcerária do mundo são os Estados Unidos e ainda sim é uma sociedade na qual a temática da violência, do menor infrator e do consumo de droga não foi eliminada. Não é apenas o enclausuramento de parte da população que resolve isso, mas sim uma melhor distribuição de renda, boas políticas habitacionais, a capacidade de oferecer uma boa educação escolar, ofertas mais dignas de trabalho, é isso que conseguirá dar conta dessa questão. O adolescente infrator não nasceu assim e não é infrator por um gosto. A infração tem explicações. O que não se tem é uma justificativa. Eu não vou justificar o latrocínio cometido por um menino de 16 anos dizendo que ele veio de uma família pobre. Isso não justifica, mas ajuda a explicar. A pobreza não torna justa a violência, mas torna clara partes das razões para isso. É importante frisar que a infração não é exclusiva do mundo da pobreza. Há um índice elevado de pessoas com condições econômicas favoráveis que também praticam a infração e a agressividade. O adolescente infrator será sempre resultado de uma sociedade que descuida das suas crianças e jovens. É preciso terminar esse ciclo de vitimação: a sociedade abandona, cria uma vítima que é a criança, e essa mesma criança cria outras vítimas quando começa a furtar, roubar, violentar, assassinar. É preciso, mais uma vez, recusar, se juntar, enfrentar e quebrar o vício de supor que isso é normal.


E em relação à tecnologia? Como você enxerga o uso dessa ferramenta desde cedo por todas as crianças, influenciando de forma direta na educação?

MSC - As ferramentas e tecnologias são extensões da capacidade do nosso corpo. O computador permite que eu faça coisas que um ser humano até faria, mas que talvez demorasse milhões de anos. Isso significa que ela em si não exige que nenhum critério ético seja pensado, ela não é boa ou má por si mesma. Assim como uma faca pode servir para cortar um pedaço de queijo e repartir com você como para feri-la ou ameaçá-la. O problema não está na faca, mas na intenção daquele que a usa. A tecnologia, por ser uma ferramenta, está conectada à filosofia em toda a história. O livro foi e ainda é a grande tecnologia de uso da filosofia. Hoje, os computadores, os leitores de texto e a utilização de tecnologia digital para a mídia servirão para o bem se a intenção for para o bem. Ela muda modos de pensar e de fazer, mas, enquanto a gente não tiver a independência das máquinas, enquanto as máquinas não forem livres de humanos, nós continuaremos sendo os responsáveis. As crianças não usam a tecnologia desde pequenas, elas vivem com a tecnologia tal qual eu cresci entre livros, são nativas digitais. Do ponto de vista da filosofia, não há o errado nem certo. Isso dependerá da intenção de quem produz, usa e dissemina a tecnologia.

Como você encara a questão da cota para negros? A medida não ajuda ainda mais a disseminar, mesmo que de forma velada, a questão do preconceito?

MSC - Eu sou absolutamente favorável à cota para afrodescendentes como medida emergencial e urgente, mas ela tem que ser provisória, até que se consiga dar uma equanimidade às oportunidades em um país que apenas há 121 anos fez a abolição formal da escravatura e que até hoje entende o negro como um serviçal, com ocupações de natureza inferior. Desse ponto de vista, a cota para afrodescendentes é mais ou menos como uma UTI em um hospital. Ninguém, em nome da igualdade, diz que se deve extinguir as UTIs nos hospitais. Ela existe para quem está em situação mais precária e a precariedade maior no Brasil é para os pobres e quase a totalidade da população pobre é negra. É preciso lidar com os fatos. Quanto às cotas poderem gerar preconceito, quem já é preconceituoso, não deixará de sê-lo ou passará a sê-lo se não o for. Aliás, as pesquisas mostraram que, aqueles que são cotistas, tiveram um desempenho acadêmico nas universidades superior ao dos não cotistas nos últimos cinco anos. Quais são os contras das cotas? Se elas se tornarem uma política permanente, porque, neste caso, ela deixa de ser uma atenção especial para se tornar um privilégio. No momento, ela funcionará como uma UTI, não porque afrodescendentes sejam inferiores, mas porque sendo tratados como inferiores, precisam ser elevados. Como disse um dia Martin Luther King , assassinado em 1968, nessa corrida, os negros partiram com 300 anos de atraso. É preciso fazer políticas de compensação para esse atraso histórico.

E se o Brasil deixasse de ser um Estado laico para ter uma religião obrigatória? Você acredita que muitas situações como, por exemplo, o aborto, ocorreriam em menor escala? Como você acha que essa discussão deveria ser guiada no Brasil?

MSC - O Brasil é um país laico desde 1889. A possibilidade de deixar de ser é remota. Não é impossível, porque na história nada é impossível. O número de países que não são laicos no planeta não é tão grande. Se nós observarmos Estados não laicos, nós temos o Irã que indica a presença da religião com maior força, alguns países no mundo islâmico, parte do Estado de Israel, então não há quase essa presença de religiões obrigatórias no mundo. Sobre a questão do acordo, há muitas religiões que não o recusam, portanto, se nós dependermos da hipótese de ter uma religião obrigatória, a condenação ou não dependeria da religião obrigatória. Se for a católica, o aborto continuaria sendo negado. Se for alguma religião cristã de outra natureza, há várias delas que não são contrárias ao aborto. Se for a religião judaica, dependerá do grupo de judeus: os ortodoxos não aceitam o aborto, outros aceitam. Portanto, dependerá sempre da perspectiva religiosa. Agora, o debate sobre o aborto no Brasil não é embasado apenas na questão religiosa. Você tem várias pessoas que não têm nenhum tipo de fé religiosa e que dizem ser contrárias ao aborto por supor que, desde o início, já se tem uma vida que não pode ser tirada. Você não necessariamente vincula a religião a isso. A noção de bioética não é necessariamente religiosa. É que no Brasil, os grupos de oposição a algumas questões ligadas ao controle de natalidade, ao aborto livre, à utilização de preservativo, à pesquisa com células-tronco, têm uma força maior ligada à religião, inclusive porque são poucas as pessoas que não têm um sentimento religioso. Nesse ponto de vista, um Estado laico em si não impede que uma religião tenha presença.