sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O caso de Dom Quixote

A obra de cervantes, escrita há 400 anos, mantém-se um desafio tanto para médicos quanto para psicanalistas.

por Moacyr Scliar




El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, ou simplesmente Dom Quixote. Sua vasta influência em nossa cultura só é superada pela Bíblia em número de traduções. O autor, Miguel de Cervantes Saavedra, satirizava os romances de cavalaria então muito populares. O protagonista, o já idoso Alonso Quijano, torna-se cavaleiro, cavalga o esquelético Rocinante acompanhado do escudeiro Sancho Pança. Percorre os caminhos da Andaluzia em busca de aventuras. E aí luta com moinhos de vento pensando que são gigantes, corteja uma aldeã como se ela fosse a dama Dulcinéia del Toboso, e vê em prostitutas belas donzelas.


Era Dom Quixote maluco, e, se era, de que doença mental padecia? A pergunta se justifica. Cervantes era filho de médico e sem dúvida familiarizado com enfermidades. Thomas Sydenham, médico do século XVII conhecido como o Hipócrates inglês, dizia que Dom Quixote era um grande tratado médico, e de fato não são poucas as doenças ali mencionadas: sífilis, lepra, problemas intestinais. Quixote prescreve remédios vegetais e acredita sobretudo no que chama de bálsamo de Ferrabrás. Também recomenda, como era comum à época, a sangria como tratamento para a pletora, o excesso de sangue. Prevalecia então a teoria humoral, segundo a qual os distúrbios mentais eram resultado do desequilíbrio dos chamados humores. Dom Quixote era um melancólico; teria excesso de bile negra.

Mas ele tinha também ataques de fúria, que resultariam da bile amarela (na linguagem de hoje, seria um bipolar). No século XVIII um novo termo será empregado: monomania, caracterizada por idéias obsessivas e fantasiosas. Jean Ettienne Esquirol, sucessor de Pinel, concordava com seu diagnóstico e observava que a monomania na Europa tornara-se muito comum após as Cruzadas.



A nomenclatura mudou de novo e, no começo do século XX, Quixote era diagnosticado como portador de paranóia crônica, ou seja, mania de perseguição, mas com um componente de megalomania. O médico alemão Ernst Krestchmer tratava de correlacionar o tipo físico com a doença mental. Magro e alto, Quixote seria um esquizotímico, um introvertido sujeito a delírios. Eram tantos os diagnósticos, que surgiram os "cervantistas", médicos que estudavam o Cavaleiro da Triste Figura.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Amar é partilhar do drama coletivo da humanidade


"Nenhum ser humano é uma ilha. Se um punhado de terra é levado pelo mar, a Europa fica menor (...) A morte de qualquer homem rebaixa-me, pois estou envolvido com a raça humana, e, portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti" Jonh Donne




Numa sociedade onde o senso de egoísmo é apurado pela propaganda massificadora, que incita a competição de mercado, está se esvaindo a noção de que somos uma raça comum e que partilhamos uma mesma história, de mútua dependência .

O olhar lançado em direção do outro é um olhar predatório ; O que é que eu ganho ou perco me aproximando daquela pessoa? As relações são de interesse econômico. As amizades são virtuais e a morte do semelhante um fato banal.

Nesse contexto, de absoluto individualismo e desamor ao semelhante, a ética cristã se apresenta como única saída possível para uma prática comunitária de respeito e compaixão aos que se ligam pela gênese comum dos homens.
Referenciados em Jesus percebemos que uma das suas grandes lições foi chamar doze homens de matizes diversos - alguns com caráter e comprometimentos duvidosos, indicando que progredir como humanos só é possível se nos relacionarmos e nos amarmos como iguais, mesmo quando tão diferentes. Homens com os quais ele gostava de estar junto, desejando com eles comer a sua última refeição. Homens com os quais dividiu seu projeto de vida; o Reino de Deus, identificando-se com eles de tal maneira que mesmo sendo seu mestre preferiu chamá-los de amigos. Homens tão intimos, aos quais, no Getsêmani, na derradeira hora da vida, pediu a companhia.

Talvez por partilhar os dramas e se identificar de forma tão profunda com a raça humana ele chora a morte de Lázaro, sentindo a perda do amigo, seu semelhante. Por isso eternamente se compadece dos que são esmagados pela dureza da vida, pois ainda chora com os que choram.
A noção de comum-unidade e dependência é o que move e faz viver a igreja. Antes de ir para o Pai, Jesus disse aos amigos: "Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros" (Jo 13.34-35).
Amar o outro conforme Jesus nos amou é colocar este outro como centro do nosso cuidado, reconhecendo que ninguém resiste aos baques da vida sozinho, ninguém existe sozinho, e que antes de buscar o meu benefício próprio tenho que me lançar na direção do outro e sanar suas necessiades.

No século XVII, doente, à beira da morte, o poeta e pregador inglês John Donne, ao ouvir as badaladas insessantes dos sinos da igreja que anunciavam a todo instante a morte de mais um vítima da peste negra, escreveu versos maravilhosos, como quem percebeu que aquele drama que assolava a Europa era o drama coletivo de toda a humanidade.

"Nenhum ser humano é uma ilha. Se um punhado de terra é levado pelo mar, a Europa fica menor (...) A morte de qualquer homem rebaixa-me, pois estou envolvido com a raça humana, e, portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti" (Meditações).

O drama coletivo da raça humana é o meu drama particular.

Reconhecer que a vida do outro me diz respeito é humanizar-me, é partilhar o mesmo sentimento do Deus que tanto amou o mundo, que por ele se humanizou. Humanizar é tornar-me aliado do Deus que não age pela meritocracia; do Deus que faz nascer o sol e faz chover a chuva sobre justos e injustos; que não faz acepção de pessoas. Ele mesmo, que quer a vida eterna para todos, para que onde Ele estiver, estejam todos também.


Alex Carrari

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jung sobre a morte e a psiquê

Jung sobre a morte e a psiquê: "Não estamos exatamente certo sobre esse fim"

O que é a morte? E como a psique poderia sobreviver à morte física? Quem responde é um dos mais fundamentais nomes da psicologia e do pensamento do século XX, o psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961), fundador da psicologia analítica, neste trecho de uma entrevista com imagens dele em vídeo feitas pela BBC em 1959. Afirmando que devemos considerar a morte como um objetivo, ele diz que ainda não sabia o que a morte era exatamente, mas que sabia por fato que “a psique não está confinada aos domínios do tempo e do espaço”. E que “só os ignorantes negam esse fato”.

O link do vídeo (4min30seg) segue abaixo, originalmente em inglês mas com legendas em português. Logo abaixo do link vídeo há a transcrição do trecho.

http://www.universalsubtitles.org/en/videos/W78167WhkHG2/info/Carl%20Jung%20speaks%20about%20Death/

Segue abaixo a transcrição deste trecho da entrevista:

P: Me lembro que você disse que a morte é psicologicamente tão importante quanto o nascimento. E como ela é parte integral da vida, mas, de verdade, não pode ser como o nascimento se é ela é um fim, pode?

Carl Jung: Sim, se ela for um fim. E ainda não estamos exatamente certos desse fim. Porque, veja, há essas faculdades peculiares da psique que não estão inteiramente confinadas ao tempo e ao espaço. Você pode ter sonhos e visões do futuro, pode enxergar além das esquinas, e essas coisas. Só os ignorantes negam esses fatos. É bem evidente que existem e que sempre existiram. Esses fatos mostram que a psique, em partes pelo menos, não depende desses confinamentos. E então o que? Quando a psique não está sob essa obrigação, de viver somente no tempo e no espaço, e obviamente não está. Então, até esse ponto, a psíque não está subjugada, a essas regras. E isso significa praticamente continuação da vida, uma espécie de existência física, além do tempo e do espaço.

P: Você mesmo acredita que a morte é provavelmente o fim de tudo? Ou você acredita…

Jung: Bem, não posso dizer. Veja, a palavra “acreditar” é uma coisa difícil para mim. Eu não “acredito”, tenho que ter uma razão… para certas hipóteses. Uma vez que sei algo, e então sei, não preciso acreditar. E se… eu não me permito, por exemplo, acreditar nas coisas só por acreditar. Não consigo acreditar. Mas quando há suficientes razões para certa hipótese, devo aceitar essas razões, naturalmente. Devo dizer que devemos reconhecer a possibilidade disso.

P: Bem, você nos disse que devemos considerar a morte como um objetivo.

Jung: Sim…

P: … e fugir dela é esquivar-se da vida e de seus propósitos.

Jung: Sim…

P: Que conselho você daria às pessoas, para que mais tarde na vida possam fazer isso, quando a maioria delas na verdade acredita que a morte é o fim de tudo?

Jung: Bem, veja, eu tratei muita gente idosa. É muito interessante observar o que a consciência delas está fazendo com o fato que estão aparentemente ameaçadas por um fim completo. Este fato é desconsiderado. A vida se comporta como se fosse continuar. Então acho que é melhor para as pessoas idosas continuarem vivendo, irem em frente, para o dia seguinte, como se ainda fosse viver por séculos, então viverá corretamente. Mas quando fica com medo, quando não olha adiante, olha para trás, choca-se, pára, e morre antes do tempo. Mas quando vive olhando em frente, para a grande aventura à frente, então vive, e trata-se do que o inconsciente quer fazer. Claro que é óbvio que todos iremos morrer, que é um triste ‘finale’ de tudo, mas, mesmo assim, há algo dentro de nós que não acredita nisso, aparentemente. Mas isso é somente um fato, um fato fisiológico. Não significa para mim que algo está provado. É simplesmente assim. Por exemplo, posso não saber porque precisamos de sal, mas preferimos comer sal também, porque nos faz sentir bem. E pensando de certa maneira, você realmente se sente melhor. E se você pensar de acordo com as linhas da natureza, você pensa corretamente.