A obra de cervantes, escrita há 400 anos, mantém-se um desafio tanto para médicos quanto para psicanalistas.
por Moacyr Scliar
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, ou simplesmente Dom Quixote. Sua vasta influência em nossa cultura só é superada pela Bíblia em número de traduções. O autor, Miguel de Cervantes Saavedra, satirizava os romances de cavalaria então muito populares. O protagonista, o já idoso Alonso Quijano, torna-se cavaleiro, cavalga o esquelético Rocinante acompanhado do escudeiro Sancho Pança. Percorre os caminhos da Andaluzia em busca de aventuras. E aí luta com moinhos de vento pensando que são gigantes, corteja uma aldeã como se ela fosse a dama Dulcinéia del Toboso, e vê em prostitutas belas donzelas.
Era Dom Quixote maluco, e, se era, de que doença mental padecia? A pergunta se justifica. Cervantes era filho de médico e sem dúvida familiarizado com enfermidades. Thomas Sydenham, médico do século XVII conhecido como o Hipócrates inglês, dizia que Dom Quixote era um grande tratado médico, e de fato não são poucas as doenças ali mencionadas: sífilis, lepra, problemas intestinais. Quixote prescreve remédios vegetais e acredita sobretudo no que chama de bálsamo de Ferrabrás. Também recomenda, como era comum à época, a sangria como tratamento para a pletora, o excesso de sangue. Prevalecia então a teoria humoral, segundo a qual os distúrbios mentais eram resultado do desequilíbrio dos chamados humores. Dom Quixote era um melancólico; teria excesso de bile negra.
Mas ele tinha também ataques de fúria, que resultariam da bile amarela (na linguagem de hoje, seria um bipolar). No século XVIII um novo termo será empregado: monomania, caracterizada por idéias obsessivas e fantasiosas. Jean Ettienne Esquirol, sucessor de Pinel, concordava com seu diagnóstico e observava que a monomania na Europa tornara-se muito comum após as Cruzadas.
A nomenclatura mudou de novo e, no começo do século XX, Quixote era diagnosticado como portador de paranóia crônica, ou seja, mania de perseguição, mas com um componente de megalomania. O médico alemão Ernst Krestchmer tratava de correlacionar o tipo físico com a doença mental. Magro e alto, Quixote seria um esquizotímico, um introvertido sujeito a delírios. Eram tantos os diagnósticos, que surgiram os "cervantistas", médicos que estudavam o Cavaleiro da Triste Figura.
Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.
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